segunda-feira, maio 06, 2013

Tecer a vida


Livros e Linhas / Imagem - Luciana Onofre 2013


A tessitura da vida depende de quem a vive, eu em essência a teço faz quase 43 anos com linhas, linhas e fios e linhas escritas, linhas de livros lidas e degustadas, linhas de fios tecidas tomando formas diversas...
Ambas são tessituras mágicas, a leitura me levou a outros universos, me ensinou meu fazer em uma miríade de sentidos e mundos.

O crochet me permite imbuir de intenções sempre benignas o que eu dou vida [digo de passagem para que não se pense males também eu teço].

Assim me vi desejando para meu aniversário que se aproxima ganhar linhas e livros!
Linhas de cores fortes, marcantes, de fios grossos, pois desejo seguir o rumo da minha avó paterna, deixar de herança aos que vierem depois de mim colchas que acalentem sonhos, acalmem pesadelos, emanem cuidado e proximidade.

Ficar horas sentada, com agulha e linha em mãos é para mim um prazer, desde sempre.
No meu país, as pessoas tecem, de fato em quase toda a região andina o fazem, sejam homens ou mulheres, isso advém das nossas raízes indígenas, dos antepassados que por causas climáticas tinham que tecer…

Tecer foi assim, primeiro necessidade física, de sobrevivência, mas tomou outras conotações em mãos de um povo que em tudo vê o sagrado, mesmo sendo profano à primeira vista. Vestes, mantos, toucas, “ruanas”, colchas ganharam cores, cores que não somente serviam para alegrar e tornar mais quentes as linhas, mas para sinalizar finalidades e assim demarcar usos.

Tecelãs e tecelões foram acurando os pontos, os arremates, aperfeiçoando as texturas, os matizes, delineando com sutileza formas e imagens, que faziam parte do cotidiano e do divino para meus antepassados.
Longos silêncios imperavam em espaços abertos, aonde a luz do Sol irrompia. Aquecendo o ambiente frio, dando às cores luminosidade e brilho, o que tornava o silêncio alegre. E mais do que isso, esse silêncio tecia histórias, tecia a história pessoal de cada tecelão e casa, e a da tribo, a da aldeia onde nasciam.

As mantas e tapeçarias que lá surgiam ocupavam lugares diversos, mas sempre aos olhos de quem os fazia, ou de quem nada a ver tinha com aquela atividade, mas sabia ser imprescindível para a lembrança das lendas, das estórias, das vidas, ali envolvidas.

As técnicas foram passando de pais para filhos, em cada tribo ou grupamento, cada uma, a técnica, tendo segredos e misturas próprias que as tornavam únicas e diferenciadoras entre tais grupos. Assim, certos pontos, cores, e diagramas faziam parte da identificação de uma classe, categoria, ou etnia entre os andinos. Diferenciação entre grupos indígenas.

No campo do ritualístico, as mantas e paramentos produzidos retratavam formas sagradas para os indivíduos. Animais sagrados de poder eram transpostos aos tecidos, histórias divinas e deidades ali retratadas.

Vale lembrar que as crenças em seres supremos, é oriunda nessas terras da reverência a Terra, e aos animais, e aos fenômenos meteorológicos. Ao trovão, à chuva, à água, às montanhas, ao jaguar, ao falcão, à rã, à cobra, ao vulcão… La Luna y El Sol. Vemos figuras antropomorfas, resultado do amalgama entre o humano e o sobrenatural animal.

E esta arte, a de tecer, passando de pai para filhos, de mãe para filha, perpetua lizou-se! É hoje admirada e degustada por quem se aventura a percorrer países andinos, por aqueles que se permitem a fuga dos roteiros comerciais e penetram pelas cordilheiras dos Andes.

Para eles, os aventureiros ou reverenciadores do Antigo, lhes é oferecida a oportunidade de vivenciar a produção dos tecelões, que sentados na grama escarpada, sob a luz gélida do Sol, tecem em grupos. E podem ver uma manufatura secular, milenar que não se altera, nem perde suas origens.

Tapeçarias andinas podem ser admiradas como algo belo, mas também se o quiser o espectador, e tendo quem o oriente, podem desvendar pequenos mitos e lendas que nelas são ilustradas, contos familiares, de clãs, sucesso heroicos, ritos, celebrações… A vida do povo que ali vivia antes do branco chegar. E que graças às tapeçarias e aos tecelões se torna viva e palpável para o indivíduo do hoje.

Assim retomo o inicio deste relato. Tecer faz parte da minha família. Pois também possuo sangue índio, do índio andino equatoriano. Minha avó tecia sentada quieta, belas colchas, gigantescas, passando meses na sua confecção. Caminhos de mesa, peças de roupa. Com pensamentos distantes.
Ao vê-la sempre era isso o que eu refletia: o quê ela pensava?


Imagem: Luciana Onofre. 2013

Eu teço, não mantas quilométricas, ainda que possa um dia vir a fazê-las. Teço desde os nove anos. Com linhas brancas ou coloridas, nomes, flores, pássaros, árvores, animais. Bordo e teço, sentada como minha avó o fazia, pensando, e hoje sei o que acontecia quando ela o fazia: colocava em cada ponto dado um pensamento. Um desejo, um sonho, um pesadelo, um acontecimento, uma previsão…
É isso que creio pensamos e fazemos ao tecer, bordar, colocamos pedaços de nós em cada pedaço, a cada laçada, a cada centímetro concluído.


Serve para mim como recordatório, muito mais do que um álbum de fotos. Serve como tele transporte: ao ver um lençol bordado, uma toalha, uma fronha, uma colcha decorada por mim, lembro com riqueza de detalhes o cheiro do momento, os acontecimentos da época, os sentimentos que vivia…
Ao usar uma manta, ou artefato por mim tecido vejo nele todos os meus sentimentos e intenções materializados em zelo, cuidado, legado.

E desvendei assim o segredo dos tecelões andinos, aqueles que vieram antes de mim.
Tecendo refizeram a nossa história, deram vida às linhas e cores, com seus próprios sentimentos de amor e apego a suas raízes, conseguiram trazer o ontem para o hoje, e principalmente mantiveram vivas suas crenças, seus deuses, seus ritos. Na linguagem da arte tecida.

Bendiciones de Tus Antiguos, sean ellos quienes sean!

Luciana Onofre

[os meus, aqueles que já vieram de mim, também tecem]

5 comentários:

  1. Conte-nos as historias do teu povo,Lu!As historias tecidas,os mitos escondidos nas linhas.As cores,os significados,os sentimentos.É uma boa maneira de falar sobre a bruxaria,sem falar...compreendes??? ;)

    Adoro ouvir historias!E admiro o seu fazer.Se morasse aí certamente ia bater a sua porta para vc me ensinar!

    Lindo texto!!!!

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  2. Sou fascinada pelas suas mãos mágicas, sabes disso. Dos teus presentes sou enciumada, rs. Tutu os usa até hj feliz! Os porta-copos, admito, não uso, não quero estragá-los; mas estão na minha cozinha, a cada abertura de gaveta, os vejo e lhe vejo. São objetos que se transformaram em decoração e afago no coração, diminuindo a distância territorial e a saudade. =)

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  3. Lindo texto!

    Quando é seu aniversário, Lu?

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  4. Eu sei que ja disse isso, mas repito: adoro teus textos! :-)

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pensados e proferidos